No concerto do dia 10 de Dezembro de 2010, ocorrido na Sala Luis Cosme da Casa de Cultura Mário Quintana, o público foi saudado com música para solos e duos. Foi o primeiro concerto da temporada 2010.
Não apenas uma grande variedade sonora, mas distintas expressões artísticas significativas de nossa cidade. O concerto apresentou unidade entre início e final do concerto, com performances de improviso / diálogos musicais em duos. Duas frentes principais delinearam o tipo de ação musical: o improviso e a ação espontânea, de um lado, e as composições, com suas ações planejadas antecipadamente (pelo menos estruturalmente). Por outro lado, apesar de contarmos com uma instrumentação relativamente pequena (a maior parte das peças contava ou com o piano ou o violão, exceto o improviso de abertura, com o baixo elétrico) a criatividade e as diferenças que caracterizam cada compositor e cada intérprete foram cruciais na geração de uma grande variedade de sons, temporalidades, experimentos e imagens.
A primeira música foi o Improviso Livre de Felipe Faraco (baixo elétrico) e Alexandre Fritzen da Rocha (piano). Nesta, tivemos o encontro de dois músicos com personalidades artísticas distintas. Faraco é compositor e baixista, roqueiro autêntico e figura transgressora no território da música de concerto. Fritzen é compositor, tecladista versátil e performático, pianista e organista que transita entre a música popular e erudita, além de pisar fundo, rodando em busca de espaços para que a música contemporânea de concerto aconteça, por aqui...
A segunda peça, Contemplações I, do compositor baiano (residente em Porto Alegre) Sérgio Lemos, foi executada pelo próprio compositor. O estado de contemplação não veio apenas pelo movimento lento, predominante na composição, mas por uma série de "arquétipos harmônicos", vívidos na memória, evidenciando sétimas maiores e resoluções singelas em figurações de curta duração. As memórias ativadas, enquanto ouvinte, me levaram até Satie, Cage e Koellreutter. A informação no decorrer do tempo, não deixou a preciosa contemplação ser fugídia, valendo-se da leveza, do tempo dilatado e da repetição renovada com delicadeza.
A terceira peça, So wie 'An', de Lauro Pecktor, foi interpretada pela pianista Maria Benincá. Trouxe uma quebra, num caráter expressivo oposto à contemplação. A peça foi inspirada em An, de Stefano Gervasoni (para flauta contralto, clarinete e trio de cordas, estreada em 1990). Como An, a peça apresenta quebras abruptas na densidade e, por outro lado mantém um sentido de tensão constante, de alguma forma. Fragmentos rítmicos fugazes e perturbados, entremeados por pausas, evocaram um sentimento de algo oculto, ora por formações cordais intrincadas, ora por uma só altura permanente por mais tempo, ao final de alguns fragmentos - o que deixou um sentimento de dúvida... Nesta peça, a incerteza molda o percurso, que se converte em ansiedade em andamento, pela constante quebra na linearidade.
A quarta peça foi Momento I de Alexandre Fritzen da Rocha, interpretada pelo compositor ao piano. Fluída, com movimento lento em que um gesto encaixa no outro utiliza a linearidade nas transições e belas transformações harmônicas. A beleza, aqui, não é colocada como um atributo de superioridade, mas como uma condição confortável, relativa a serenidade com uma pequena ânsia pelo futuro. As sugestões de harmonia quartal e triádica são elaboradas de forma orgânica. A espera, frequentemente me conduziu a um sentimento do sublime, num ponto onde articulações, timbres e coleções de alturas se fundem. Além do timbre tradicional, o compositor utilizou de uma folha de papel sobre as cordas do piano, num curto momento, tal como um comentário. Melancolia e dramaticidade velada também fazem desta obra, um momento de cuidado e reflexão na expressão de sentimentos-sons.
A quinta peça foi Nyx de Lauro Pecktor - a qual assisti pela terceira vez – interpretada por Alexandre Fritzen. Com movimento lento e organizações harmônicas ora tranquilas, ora perturbadas, me levou a contemplar os sons e a carga de movimento, gerada pelos batimentos. O ambiente obscuro (Nyx é a deusa da noite, na mitologia grega) aparece num jogo de oposições com amplo uso do registro. Graves e agudos convivem num mesmo percurso, com foco nas diversas complementações claro-escuro com notas de longa duração, num tempo "sem tempo". Em meio a isso, pequenos segmentos líricos que remetem a Chopin. A convivência de registros evoca uma correspondência entre sombra (registro grave) e luz (agudo), numa alusão às imagens noturnas: o céu obscuro e as estrelas brilhantes, imersas no vazio atemporal.
A sexta peça foi a Toccata III, de Fernando Lewis de Mattos, interpretada pela violonista Fernanda Krüger. Foi composta a partir das partes instrumentais da canção A Morte do Leiteiro, a qual tive a oportunidade de ouvir em 2005, com Fernanda e o barítono Demerval Keller. A peça apresenta a alternância e o retorno entre 2 momentos principais, um mais movido e fluído, com figuração circular e reiterada, com rapidez no dedilhado, e o outro contrapontístico e pontuado. A obra traz um pouco da brasilidade de Mattos, que transita com liberdade – e conhecimento de causa – entre o nacional e o universal (cruzamento, aliás, que foi parte do objeto de sua tese de doutorado em Música), a cultura de tradição popular e a música erudita. Num contexto modal, o movimento do primeiro segmento introduz força e progressividade, o que é contraposto ao segmento mais pontuado, interrompido e pesado, do segundo momento.
A última música, fechando a "forma em arco acidentado" do espetáculo, foi o Improviso Livre do duo de violões HoffParú (Nativo Hoffmann e Nanã Parú Quintela Pombo). A música dos dois foi algo extremo. Lembro-me de conversar com Nanã, ao final do concerto sobre o risco - algo tão cobiçado em Performance Art e que vem sendo explorado por artistas de diversas áreas em nossa cidade - e este me falou até de um suposto novo gênero de música, chamado danger music. A partir daí pensei: "o HoffParú faz Danger Music". Ao violão, empunharam ferramentas diversas, baquetas, potes de vidro, espiral de batedeira e muitos giros das cravelhas, provocando mudanças extremas na afinação. Num destes momentos (de re-afinação), achei que a corda mi fosse estourar. Mas os rapazes sabem a medida certa da força. O violão teve muitas transfigurações como instrumento, adquiriu atributos que não possui, no uso tradicional. E tudo isso através da paixão dos músicos pela arte sonora e pelo improviso livre, o que fica evidente na sintonia que os une e os leva a enfrentar o risco, juntos.
Fazendo um balanço do concerto, que teve desde a contemplação musical até a pesquisa sonora "de risco", posso dizer que foi uma noite diversa e rica em sonoridades e expressão. Gostaria de ver mais pessoas interessadas pela música como prática artística, descobrindo corajosamente suas possibilidades expressivas, desde os sons mais humildes até a "danger music". Isso, no entanto, requer iniciativas como esta, deste grupo de jovens compositores e altruístas que apostam na diferença, sem o ranço da memória estereotipada, pretendida como memória cultural "real" por certas mídias. O presente abarca individualidades peculiares. Que nos mantenhamos atentos ao presente e aos frutos dos condicionamentos e certas expectativas, que nos acomodam e nos diminuem.
Vida longa e próspera ao Música de PoA!
Cuca Medina
(compositora)
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
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Um comentário:
Que belo texto, Cuca!
Comentário sobre um converto...ou aula magistral?
Longa vida ao Música de POA!!
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